terça-feira, 19 de maio de 2009

Quem quer ser um Milionário na Cidade de Deus?

Se no filme brasileiro “Cidade de Deus”, o Buscapé usasse os seus conhecimentos de favelado para acertar as respostas do Show do Milhão;
Se nessa situação bizarra o Silvio Santos fosse um egocêntrico mau-caráter;
Se o Zé Pequeno sacrificasse sua vida para que a Angélica ficasse com o Buscapé no final;
Se todas essas coisas se juntassem num filme falado parcialmente em inglês e dirigido por um britânico, responda, valendo um milhão de dólares:
“Quem quer ser um milionário?” seria:
A) Um filme mais chato que “Cidade de Deus”.
B) Um filme menos importante que “Cidade de Deus”.
C) O pior filme ganhador do Oscar desde “Titanic”.
D) Quem se importa? É só o ganhador do prêmio mais decadente do cinema.

Na minha opinião, todas as alternativas anteriores.

Letra A: “Cidade de Deus” é, para mim, um grande filme. Não por acaso, foi escolhido entre os cem melhores filmes do século (logo, um dos cem melhores de todos os tempos). Mas aí, é claro, entra a minha identidade nacional, minha brasilidade, meu patriotismo, talvez até uma espécie de chauvinismo que me acomete quando o assunto é cinema. A trilha sonora de “Cidade de Deus” é absolutamente superior à de “Slumdog Millionaire”, pelo menos do ponto de vista de qualquer brasileiro. O Rio de Janeiro é absolutamente mais bonito que Mumbai, do ponto de vista... vá lá, nesse caso é do ponto de vista de qualquer um, brasileiro, indiano, marciano... O ritmo em “Cidade de Deus” é muito bem mantido, assim como o suspense, o humor. Os dois filmes mostram logo no começo um acontecimento que somente será esclarecido perto do final. A diferença é que em “Cidade de Deus”, isso não atrapalha o suspense, enquanto que em “Slumdog” não tive a menor dúvida, desde o primeiro minuto de filme, de que o Jamal ganharia o prêmio.

Letra B: tudo bem, não dá para negar que “Slumdog” é um filme importante. É um filme falado em uma língua do mundo subdesenvolvido, retrata uma periferia – que embora esteja do outro lado do globo, tem características muito semelhantes à nossa. Lembrei muito do lixão em Campo Grande, quando vi os meninos no lixo de Mumbai; usando uma palavra que o Ferreira Gullar usa muito e que é bem mais bonita: um monturo é um monturo é um monturo. Essa periferia merece não só um, mas muitos retratos. Por isso não há razão nem desculpa para ciumeira. Mas “Cidade”, que me perdoem, é ainda mais importante. “Cidade de Deus” deveria ser obrigatório para todo brasileiro, deveria ser obrigatório para todo viciado em cocaína norte-americano, europeu ou de qualquer outro lugar do mundo. Vou explicar.
Primeiro: “Cidade” mostra as forças históricas em ação. O roteiro em forma de épico, abordando as fases da ocupação, o surgimento da favela, a instalação do tráfico, a ausência do Estado, os mecanismos sociais de reprodução da violência, permite uma compreensão rápida e profunda do problema do crime organizado no Brasil, um problema que ainda está sem resposta e que ameaça a vida nessa que a cidade mais linda do mundo. Ao mostrar as forças históricas, humaniza a favela, de-sataniza o morro, que como diria Zé Kéti, “não tem vez...”
Segundo: junto com “Tropa de Elite”, mostra aos viciados em cocaína do mundo que eles são co-responsáveis pela violência no mundo subdesenvolvido, disparada pelo tráfico. Acho que foi por isso que o Costa Gavras deu o Urso de Ouro para “Tropa”.
Terceiro: junto com “Tropa de Elite” e “Meu nome não é Johny”, completa uma trilogia sobre os danos sociais do tráfico de drogas. Gilberto Freyre dizia que a escravidão corrompia não só o escravo, mas também o senhor. Parafraseando: o tráfico corrompe toda a sociedade, dos pobres aos ricos, passando pela polícia.

Letra C: Tudo bem, peguei meio pesado. “Titanic” (1998) é um lixo, “Slumdog Millionaire” é bacana. Mas vejam a lista (com as respectivas notas, com narração de comissão avaliadora do desfile das escolas de samba carioca): “Shakespeare in Love” (1999), nota 10; “Beleza Americana” (2000), nota 10; “Gladiador” (2001), nota 9; “Uma mente brilhante” (2002), nota 9,5; “Chicago” (2003), nota 10; “O senhor dos anéis: o retorno do rei” (2004), nota 10; “Menina de ouro” (2005), nota 10; “Crash” (2006), nota 8 (sem comentários); “Os infiltrados” (2007), não vi; “Onde os fracos não tem vez” (2008), nota 10! Dessa lista, talvez só “Crash” seja mais fraco que “Slumdog Millionaire”...

Letra D: ora, ora, ora... Chega de me preocupar com o Oscar, vulgo prêmio Décadance avec Élegance do cinema...

Também me irritaram em “Quem quer ser um milionário?”: 1) roteiro esquemático e fácil demais, força a barra com perguntas com relação óbvia com o submundo a que pertence o “favelado” (slumdog): quem é o inventor do revólver? 2) visão de mundo radicalmente liberal: mesmo um favelado sem nenhuma chance na vida, sem educação formal, pode se realizar na vida pessoal e econômica. Moral da estória: “coisas boas acontecem para boas pessoas”, um alívio para a consciência dos cidadãos dos países ricos: “ufa, aquela estória de responsabilidade pelo subdesenvolvimento é muito chata... podemos ficar tranqüilos, porque os bonzinhos se dão bem lá na Índia”; 3) um cena em especial: quando o menino leva os turistas para ver as lavadeiras na margem do rio, e o carro deles é depenado, segue-se o diálogo: “Vocês não queriam ver a Índia real? Aí está”, ao que a mulher responde: “Vamos mostrar um pouco da América real, filho...”, e manda o marido entregar para ele a nota de cem dólares com a cara do Benjamin Franklin...

domingo, 10 de maio de 2009

Poema de dia das mães

Lembrei do primeiro poema que eu escrevi na vida (e talvez o melhor de todos). Foi um poeminha de dia das mães, para um concurso de alunos da quarta série. Aos oito anos, aprendi muito com ele quando vi minha mãe começar a chorar de me ouvir recitando, no quarto dela, de manhã cedo, em frente à "camona":

Ó mãe que amo tanto
E que me ama também
És tudo na minha vida
Como no mundo ninguém

Me levas para passear
Me levas para brincar
Te levo pro meu coração
E não te tiro mais não


... E mais umas três estrofezinhas, rigorosamente rimadas e com um estilo grandioso que seria minha marca registrada por muitos anos (o adulto já estava presente no menino), que eu não lembro mais de cor. Lembro, sim, do meu susto com as lágrimas dela, meu desentendimento daquela reação. Eu ainda não sabia que era possível chorar de alegria.

Fiquei em segundo lugar no concurso, para revolta da minha professora, que garantia que o poema do primeiro colocado tinha sido plagiado, que ela já tinha lido em um livro. Mas mesmo assim, acho que ganhei algum premiozinho, não lembro qual. O prêmio não foi importante. Importante foi aprender a chorar com a emoção que a literatura e outras artes despertam no ser humano, aprender sobre o poder das palavras. Mais que isso. Foi aprendê-lo com a minha mãe.

sábado, 9 de maio de 2009

Conto ou desconto?

Continuo meio sem tempo e meio sem inspiração para escrever no blog. Tudo bem, essa conversa mole de inspiração é coisa de amador. Mas, até aí, eu sou mesmo amador. Mas sou um amador fascinado com a capacidade desses escritores que têm colunas em jornais, diárias, semanais, seja o que for. Desenvolvem uma capacidade fantástica de criação. Tornam-se meio máquinas, despejando material impresso com hora marcada. Ainda não tenho isso. Mas, até aí, ainda nada de excepcional, eu nunca tive que escrever com a pressão do prazo. Quem faz o escritor? A inspiração ou o prazo?

Calvin e Haroldo respondem:



Então, para encher linguiça, vou postar um conto que eu escrevi na época em que estava morando em Brasília.

* * *

GRANDE AUTOR ALEMÃO

Ele chegou. A noite era só um negrume de estrelas e asfalto. As ruas eram paralelos e meridianos, infinitas. Ele viera de muito longe, de onde o escuro era ainda mais escuro e cada vaga-lume se juntava às estrelas e fazia coro com a Via Láctea. Ele não sabia esse nome. Via Láctea. Ele apenas via. Aqui, ele já não podia mais enxergar aquele balde de leite atirado para cima e fotografado sobre fundo escuro, para o resto do Tempo. Aqui, as estrelas eram magrinhas. Tristes estrelas. Sentiu o vento nos dedos dos pés, sobre as sandálias de dedo. Era gostoso aquele vento sobre o latejando dos dedos. Mas só mais um pouco.
Não podia ter certeza de nada, nem a hora certa, nem o lugar exato, nem a pessoa indicada. Não havia como. Havia os seus pés. Havia o seu sentimento do mundo. Havia o bolso da esquerda, vazio, e o bolso da direita, cheio. E havia um combinado com o bolso cheio. Tinha que esvaziá-lo, para transformar aquele pedaço de dúvida em certeza.
O céu começou a colorir, mais de um lado que do outro. Havia uma nuvem. Uma só nuvem. Que dia, ele pensou. Tanto sol e uma nuvem só. Apertou o passo. Chegou. Um descampado diferente, com uma construção de concreto aqui e ali. Procurou uma árvore, mas todas estavam em bandos. Acompanhadas. Pequizeiras, todas aqui. Sibipiúnas, todas ali. Ipês roxos, floridos, todos mais acolá, sempre em bandos de três, quatro, cinco. E assim os bambus, os arranha-gatos, as primaveras, as grevilhas e uma série de todo tipo de árvore ou arbusto que o cerrado era capaz de sustentar. As plantas postas aqui e ali, mas isso dava um descampado. Cada tipo no seu canto, umas encarando as suas outras iguais, para sempre, de castigo. Por cima, o céu, que não se apaga nunca. Pelos lados, os outros, o inferno, cada árvore vizinha era uma testemunha de tudo quanto a outra fez ou deixou de fazer durante a vida toda. Era aquele o lugar. Um lugar onde o conhecimento produzia as coisas assim, artificialmente separadas, catalogadas. Era ali que saberiam mais que ele. E era fácil, já que ele sabia tão pouquinho.
Sentou-se debaixo de um angico branco fininho, que não dava quase nenhuma sombra. De onde ele sentou, avistava tudo. Todas as árvores, espalhadas, de castigo; todos os prédios poeirentos, quietos, poucos, longe uns dos outros; todas as águas do Lago, bem juntas e dormidas; toda a nuvem, única, cada vez mais única, à medida que o céu ficava mais amplo, mais azul, mais impiedoso; todas as vias, por onde chegavam carros de todo tipo; todas as pessoas que chegavam a pé, como ele; todas as letras da placa colocadas na seguinte ordem:
B I B L I O T E C A
Ele sabia o que isso queria dizer. Queria dizer que ali dentro, alguém saberia explicar o que havia dentro do bolso direito.
Esperou até que mais pessoas tivessem entrado na biblioteca. Não podia afobar as coisas. O tempo certo das coisas. Além do mais, do lado de fora, com ele, ainda havia tanta gente sem entrar. Muita gente se sentava nas gramas e estendia bancas com o que vender. Uns tipos sujos, com cabelos muito variados, vendendo todo tipo de acessório cheio de penas e de sementes, que ele julgou não terem valor algum. E tinha os limpos. Os pretos limpíssimos e cheirosos, com as peles mais lindas que já se viram, falando línguas bizarras. Eram dois bandos bem definidos, os brancos sujos mascates e os pretos limpos estrangeiros, ambos muito diferentes de tudo o que ele conhecia. Ele conhecia muito pouco mesmo. E havia os outros, de todas as cores, que entravam e saíam da biblioteca, automáticos como insetos. Teve a impressão de que não existia mais. Estava ali, entre árvores, tribos, insetos, e nada nem ninguém dá por ele. Permanece sentado sob o angico que não dá sombra, sob a nuvem que não dá sombra, sob o sol que não dá descanso.
Mas enfiou a mão no bolso direito, o papel estava lá. Aquele obséquio de nada o trouxera até ali. Ele se levantou. Foi até a entrada e foi além. Os insetos passavam automaticamente por uma catraca, ele seguiu. Havia portas do lado de lá e do lado de cá. Havia duas mesas bem no centro da sala, com uma pessoa sentada em cada, atendendo uma fila curta. Ele se juntou à fila. Uma mulher disse “próximo” e ele era o mais próximo que havia dela. Estendeu a mão, com o papel dobrado.
A mulher disse “hum”, e mostrou à outra, e a outra disse “ah”, e as duas olharam para ele, e a primeira disse “pode esperar um momento” e saiu. Ele esperou, a outra disse “não quer se sentar” e ele não quis.
A primeira mulher voltou com um homem de barba branca, curta, e uns óculos muito redondos. O homem estendeu o papel de volta e disse:
- É um poema de Goethe.
- ?
- É um grande autor alemão.
- ...
- ?
- Então é língua estrangeira.
- Sim.
- ...
- É um poema famoso de Goethe.
- Mas...
- Sim?
- Fui eu quem escrevi.
- Hum.
- ...
- Parabéns. Você é um grande autor alemão.