sábado, 9 de maio de 2009

Conto ou desconto?

Continuo meio sem tempo e meio sem inspiração para escrever no blog. Tudo bem, essa conversa mole de inspiração é coisa de amador. Mas, até aí, eu sou mesmo amador. Mas sou um amador fascinado com a capacidade desses escritores que têm colunas em jornais, diárias, semanais, seja o que for. Desenvolvem uma capacidade fantástica de criação. Tornam-se meio máquinas, despejando material impresso com hora marcada. Ainda não tenho isso. Mas, até aí, ainda nada de excepcional, eu nunca tive que escrever com a pressão do prazo. Quem faz o escritor? A inspiração ou o prazo?

Calvin e Haroldo respondem:



Então, para encher linguiça, vou postar um conto que eu escrevi na época em que estava morando em Brasília.

* * *

GRANDE AUTOR ALEMÃO

Ele chegou. A noite era só um negrume de estrelas e asfalto. As ruas eram paralelos e meridianos, infinitas. Ele viera de muito longe, de onde o escuro era ainda mais escuro e cada vaga-lume se juntava às estrelas e fazia coro com a Via Láctea. Ele não sabia esse nome. Via Láctea. Ele apenas via. Aqui, ele já não podia mais enxergar aquele balde de leite atirado para cima e fotografado sobre fundo escuro, para o resto do Tempo. Aqui, as estrelas eram magrinhas. Tristes estrelas. Sentiu o vento nos dedos dos pés, sobre as sandálias de dedo. Era gostoso aquele vento sobre o latejando dos dedos. Mas só mais um pouco.
Não podia ter certeza de nada, nem a hora certa, nem o lugar exato, nem a pessoa indicada. Não havia como. Havia os seus pés. Havia o seu sentimento do mundo. Havia o bolso da esquerda, vazio, e o bolso da direita, cheio. E havia um combinado com o bolso cheio. Tinha que esvaziá-lo, para transformar aquele pedaço de dúvida em certeza.
O céu começou a colorir, mais de um lado que do outro. Havia uma nuvem. Uma só nuvem. Que dia, ele pensou. Tanto sol e uma nuvem só. Apertou o passo. Chegou. Um descampado diferente, com uma construção de concreto aqui e ali. Procurou uma árvore, mas todas estavam em bandos. Acompanhadas. Pequizeiras, todas aqui. Sibipiúnas, todas ali. Ipês roxos, floridos, todos mais acolá, sempre em bandos de três, quatro, cinco. E assim os bambus, os arranha-gatos, as primaveras, as grevilhas e uma série de todo tipo de árvore ou arbusto que o cerrado era capaz de sustentar. As plantas postas aqui e ali, mas isso dava um descampado. Cada tipo no seu canto, umas encarando as suas outras iguais, para sempre, de castigo. Por cima, o céu, que não se apaga nunca. Pelos lados, os outros, o inferno, cada árvore vizinha era uma testemunha de tudo quanto a outra fez ou deixou de fazer durante a vida toda. Era aquele o lugar. Um lugar onde o conhecimento produzia as coisas assim, artificialmente separadas, catalogadas. Era ali que saberiam mais que ele. E era fácil, já que ele sabia tão pouquinho.
Sentou-se debaixo de um angico branco fininho, que não dava quase nenhuma sombra. De onde ele sentou, avistava tudo. Todas as árvores, espalhadas, de castigo; todos os prédios poeirentos, quietos, poucos, longe uns dos outros; todas as águas do Lago, bem juntas e dormidas; toda a nuvem, única, cada vez mais única, à medida que o céu ficava mais amplo, mais azul, mais impiedoso; todas as vias, por onde chegavam carros de todo tipo; todas as pessoas que chegavam a pé, como ele; todas as letras da placa colocadas na seguinte ordem:
B I B L I O T E C A
Ele sabia o que isso queria dizer. Queria dizer que ali dentro, alguém saberia explicar o que havia dentro do bolso direito.
Esperou até que mais pessoas tivessem entrado na biblioteca. Não podia afobar as coisas. O tempo certo das coisas. Além do mais, do lado de fora, com ele, ainda havia tanta gente sem entrar. Muita gente se sentava nas gramas e estendia bancas com o que vender. Uns tipos sujos, com cabelos muito variados, vendendo todo tipo de acessório cheio de penas e de sementes, que ele julgou não terem valor algum. E tinha os limpos. Os pretos limpíssimos e cheirosos, com as peles mais lindas que já se viram, falando línguas bizarras. Eram dois bandos bem definidos, os brancos sujos mascates e os pretos limpos estrangeiros, ambos muito diferentes de tudo o que ele conhecia. Ele conhecia muito pouco mesmo. E havia os outros, de todas as cores, que entravam e saíam da biblioteca, automáticos como insetos. Teve a impressão de que não existia mais. Estava ali, entre árvores, tribos, insetos, e nada nem ninguém dá por ele. Permanece sentado sob o angico que não dá sombra, sob a nuvem que não dá sombra, sob o sol que não dá descanso.
Mas enfiou a mão no bolso direito, o papel estava lá. Aquele obséquio de nada o trouxera até ali. Ele se levantou. Foi até a entrada e foi além. Os insetos passavam automaticamente por uma catraca, ele seguiu. Havia portas do lado de lá e do lado de cá. Havia duas mesas bem no centro da sala, com uma pessoa sentada em cada, atendendo uma fila curta. Ele se juntou à fila. Uma mulher disse “próximo” e ele era o mais próximo que havia dela. Estendeu a mão, com o papel dobrado.
A mulher disse “hum”, e mostrou à outra, e a outra disse “ah”, e as duas olharam para ele, e a primeira disse “pode esperar um momento” e saiu. Ele esperou, a outra disse “não quer se sentar” e ele não quis.
A primeira mulher voltou com um homem de barba branca, curta, e uns óculos muito redondos. O homem estendeu o papel de volta e disse:
- É um poema de Goethe.
- ?
- É um grande autor alemão.
- ...
- ?
- Então é língua estrangeira.
- Sim.
- ...
- É um poema famoso de Goethe.
- Mas...
- Sim?
- Fui eu quem escrevi.
- Hum.
- ...
- Parabéns. Você é um grande autor alemão.