quinta-feira, 30 de abril de 2009

Faroeste caboclo

Aparentemente, era apenas mais uma tarde de sol impiedoso. Los tres amigos, Juán, Tiago y Julia, rumavam para aquele pequeno oásis de ar condicionado, chocolate gelado e tapioca, sem imaginar o que os esperava. Adentraram o saloon, sem se preocuparem com o ruído de suas botas e suas esporas. Acomodaram-se amplamente numa mesa limpa. Uma mesa exageradamente asséptica. Uma mesinha frozô demais! Blergh! “Já não se fazem mais espeluncas como antigamente, compadre John”, disse Julia. O execrável Tiago concordou com uma gargalhada que deixava à mostra seus dentes apodrecidos e espalhava seu mau-hálito por todo o Café Expresso. Estava claro que havia uma tensão entre os três. Qualquer coisa seria um pretexto para um duelo. Mas eles não podiam imaginar que havia ali um tesouro em troca do qual eles dariam todo o ouro que carregavam com eles.
A um abrir da porta, um vento adentrou o recinto, alcançou o balcão e foi sacudir as folhas novas, exageradamente fresquinhas, de uma edição da... FOLHA DE S. PAULO do dia! Sim, leitor, não era uma Folha de S. Paulo do dia anterior, nem de dois dias anteriores, como era possível comprar nas bancas de Boa Vista. Era uma edição do dia, que certamente fora trazida por algum forasteiro recém-chegado à cidade por meio de algum transporte aéreo moderno, exageradamente moderno! Argh!
Com o farfalhar das preciosas folhas sobre o balcão, los tres amigos se entreolharam, querendo crer que os outros dois não tivessem notado a presença do desejado símbolo de modernidade e preciosa fonte de informação e entretenimento. Qual dentre eles leria primeiro a Ilustrada? Qual poderia folhear primeiro a seção Opinião? Como por obra de uma conjuração do Universo, o rádio tocou uma majestosa trilha de Enio Moricone.
Juán tentou um golpe de suposta ingenuidade: “Comadrezita Julia” - ele disse, sabendo o quanto ela detestava ser chamada de “comadrezita” - “alcance o jornal que está sobre o balcão”... Ela trincou os dentes. Ele concluiu pausadamente: “por favor... Ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha!” Juán e Tiago gargalharam com o irritável gesto de polidez!

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Foi mais ou menos isso que aconteceu ontem. Mas passada a tensão inicial, os três puderam ler a Folha de S. Paulo toda, sem maiores incidentes.

De qualquer forma, essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com personagens ou circunstâncias reais é meeera coincidência.

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Eu estou tentando recuperar o tempo perdido nas últimas semanas, então vou fazer hoje um resumo dos principais acontecimentos. Em primeiro lugar, eu não podia deixar de mencionar o sucesso da segunda temporada do espetáculo de teatro-esporte-improvisação TPM – Todas Pela Medalha (foto), com direção de Carol Araújo, em Campo Grande, no projeto SESC Em Cena. Eu que já tive a honra de ser o apresentador desse espetáculo, fiquei muito feliz de saber que o público compareceu em peso. Com o já diria Cacilda Becker, “teatro cheio renova as esperanças”.

Também aqui em Boa Vista, e também no SESC, assisti esses tempos atrás à comédia De malas prontas, da Cia Pé de Vento, de Santa Catarina. Sinopso (é “sinopso” mesmo, primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “sinopsar” que eu acabei de inventar): duas mulheres perdem o vôo e são obrigadas a conviver num banco de aeroporto durante algumas horas. Basicamente, é isso. O espetáculo ressalta, pela ausência de falas, a fantástica capacidade expressiva do corpo humano, com grande efeito humorístico. Logo no início, lembrei da abertura do filme "O Baile", de Ettore Scola. As duas atrizes entram pela platéia, com uma trilha sonora, e apresentam seus personagens, como no filme do genial diretor italiano. O espetáculo traz também uma releitura de números clássicos de circo, muito criativa: atiram-se facas, prende-se uma mulher dentro de uma câmara onde se enfiam espadas.

Tive a impressão de que a peça traz uma leitura marxista do mundo: as duas pequeno-burguesas, vítimas da alienação do capitalismo, são incapazes de se comunicarem. Presas em seus individualismos e presas ao fetiche dos itens de consumo (entre eles, a viagem ao exterior), acirram sua disputa de interesses, metaforizando a guerra das grandes potências imperialistas pelo “espaço vital”. Um retrato da barbárie que, segundo Marx, seria intrínseca ao capitalismo. Talvez eu esteja vendo chifre em cabeça de cavalo (ou “barba em rosto de Liberal”). Talvez seja só uma crítica bem humorada da incapacidade do homem contemporâneo de se comunicar e de cooperar para alcançar o bem comum. Assim como dá para ver elementos marxistas, dá pra ver também elementos do Realismo e do pós-modernismo.